Entre Aprendizagem e Desejo
Conhecendo Sara Pain
Revista Scientific American - por Márcia Cristina de Oliveira Mello
Psicóloga e educadora argentina, hoje com 78 anos e em atividade chama atenção para importância de aspectos psicológicos da aprendizagem.
Formação acadêmica sólida, preocupação em valorizar o aluno como um agente do processo educacional e inquietações sociais - em um período em que eram pouco abordadas - fazem da argentina Sara Paín uma referência não apenas nas pesquisas sobre cognição, mas também nas discussões sobre formas mais eficientes de ensinar, levando em conta aquele que aprende, sua forma de pensar e os desdobramentos da assimilação intelectual. Ela defendeu uma ideia que hoje pode parecer óbvia, mas há algumas décadas encontrava resistência: a necessidade de que professores conhecessem características e potencialidades dos alunos para melhor auxiliá-los. Sua considerável produção intelectual, voltada para a educação, é articulada principalmente com o materialismo histórico dialético e com as teorias de Jean Piaget e Sigrnund Freud. Algumas questões básicas norteiam seu trabalho. Entre elas: como concebemos o ser humano que nos propomos a educar e como concebemos seu pensamento.
Nascida em 1931, doutorou-se em filosofia pela Universidade de Buenos Aires e em psicologia pelo Instituto de Epistemologia Genética de Genebra. Trabalhou como professora universitária, ministrando disciplinas relacionadas à psicologia, mas devido a sua posição política foi obrigada a exilar-se na França, país onde mora desde 1977, onde foi professora da Universidade de Paris XIII e da Faculdade de Psicologia, em Tolouse. Também assumiu o posto de assessora da Unesco para problemas de inteligência e aprendizagem.
Desde seus estudos no doutorado, na Suíça, ela se preocupou com as crianças que tinham dificuldade para acompanhar os colegas na sala de aula. Voltada a esse tema, estudou a constituição do sujeito, considerando a necessidade do aluno se perceber como alguém que existe no mundo - e que aprender deve fazer sentido para ele. Paín sustenta que a apreensão e incorporação de informações não se produzem por impregnação, mas por uma ação dirigida ao aluno, oferecendo-lhe condições para que ele desenvolva suas próprias hipóteses e construa o conhecimento. “A apropriação desse saber é natural nas crianças que não têm problemas de aprendizagem", afirma a psicóloga e educadora. Para ela, não basta o diagnóstico dos problemas de aprendizagem, é preciso contar também com um psicodiagnóstico abrangente.
• Os quatro fatores
No livro Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem (lançado no Brasil pela Artmed, em 1985), Paín oferece importante contribuição aos psicopedagogos e professores. Ao conceituar o problema de aprendizagem como um sintoma que não se configura em um quadro permanente, a autora enumera quatro grupos de fatores que precisam ser levados em consideração no diagnóstico: orgânicos, ligados ao desenvolvimento geral da criança e sua qualidade de vida; específicos, relacionados a transtornos na área da adequação perceptivo-motora, psicógenos, que se constituem como inibição e defesa; ambientais, vinculados ao acesso do sujeito ao saber elaborado (científico) em seu meio.
Ao tratar do problema da aprendizagem em uma perspectiva multifatorial, Paín sustenta que todo diagnóstico é sempre uma hipótese inicial que precisa ser verificada em cada momento da relação com o aluno. Daí a importância de a família e a escola não enfatizarem as dificuldades, pois muitas delas podem ser compensadas e superadas - já a supervalorização tende a reforçá-las como algo inerente ao aluno.
No campo da alfabetização o pensamento da educadora contribuiu para a compreensão dos motivos que levam muitas crianças ao fracasso na escolarização inicial. Dessa forma, desde os anos 80 alguns psicólogos, professores, psicopedagogos e outros profissionais do ensino encontraram na teoria de Paín um referencial importante, especialmente porque suas ideias dão conta das dimensões da objetividade e da subjetividade do pensamento do aluno que aprende ou não aprende.
Em 1989, Sara Paín escreveu que o professor precisa estimular o aluno à participação e ter tolerância em "períodos necessários de ensaio e confusão e aceitar comportamentos considerados errados, como reações próprias de uma etapa do processo de aprendizagem". A alfabetização, para ela, deve ser um momento de alegria - e, em grande parte, cabe ao professor propiciar esse ambiente na sala de aula.
Um dos pontos mais enfatizados pela psicóloga - e uma de suas contribuições - é o de que a escola tem a importante função de favorecer o desenvolvimento das crianças como pessoas autônomas, para que desenvolvam a capacidade afetiva e intelectual necessária à aquisição de conhecimentos. Para a autora, a escola precisa produzir uma didática fundamentada em conceitos científicos, que favoreça o aprendizado, independentemente do grupo social ao qual cada aluno pertence.Ela acredita que o conhecimento deve ser propriedade de todos, mesmo daqueles com alguma dificuldade.
• Bem perto do Brasil
Hoje, aos 78 anos, Sara Paín participa com frequência de atividades acadêmicas e científicas na França, na Argentina e no Brasil, onde integrou projetos e atuou como consultora de instituições. Contribuiu no Grupo de Estudos sobre Educação e Metodologia de Pesquisa e Ação (Geempa), em Porto Alegre; no Centro de Estudos Psicopedagógicos do Rio de Janeiro (Cererj); no Centro de Estudos Educacionais Vera Cruz (Cevec) e no Projeto Humanidades 2000, os dois últimos em São Paulo. Sua relação com os brasileiros se intensificou em 1991, com a realização de um evento em São Paulo, organizado pelo Núcleo de Estudos Sara Paín (Nesp), fundado um ano antes e coordenado pela psicóloga Sonia Maria B. A. Parente.
• A aventura do conhecimento
Ao formular sua teoria, Sara Paín sustenta que há relações entre o desejo e o conhecimento, e que a capacidade de aprender está vinculada a quatro estruturas fundamentais: o organismo, o corpo, a estrutura cognitiva ou a inteligência e a estrutura dramática. Tudo aquilo que nos permite funcionar equilibradamente faz parte do organismo. Além de fazer a regulação funcional de trocas com o meio, são inscritos esquemas perceptivo-motores e automatismos, o que é fundamental para a aprendizagem, pois permite a aquisição de novos conhecimentos. A aprendizagem da leitura e da escrita, por exemplo, requer automatismos audiofônicos, gestuais e grafomotores. Paín assinala que o sistema neurológico deve estar completo e bem desenvolvido, caso contrário a aprendizagem será enfraquecida, porém nunca anulada. Como o organismo representa memória ativa, outras regulações orgânicas interferem no desempenho da criança: acuidade visual e acuidade auditiva, possibilidade de construção de coordenações reversíveis, audiovisuais e grafomotoras.
O corpo, na definição de Paín, é o centro em que ocorrem todas as coordenações percepto-motoras. Na aprendizagem, o corpo é ativo e ao mesmo tempo campo de ressonância das emoções e do prazer. Na aquisição da leitura e da escrita o corpo participa ativamente, e isso é observável nas estratégias usadas como ponto de referência, como seguir as palavras com o dedo, movimentar a pupila e a cabeça. Se a aprendizagem for significativa, o prazer de decifrar algo se desloca para o prazer da compreensão do texto e da atribuição de sentido a ele. E, para Paín, quando o aluno encontra um sentido naquilo que lê, descobre também uma fonte de afetos.
A inteligência tem estreita proximidade com as estruturas cognitivas, e as dificuldades da leitura (uma atividade inteligente) são dosadas pela capacidade global de compreensão e não pela falta de habilidade específica para o ato de ler. De acordo com a teoria de Jean Piaget, aprendemos porque temos mecanismos assimiladores à disposição para tal. Pela assimilação e acomodação um novo estímulo se converte em um esquema mais complexo que o anterior, e sucessivamente conteúdos cada vez mais complexos vão se tornando conhecimento.
A dimensão dramática está relacionada ao desejo, considerado uma representação que ocupa o lugar da falta (só desejamos porque algo nos falta). Para Paín, inteligência e desejo complementam-se. Assim, é preciso haver um jogo dramático no processo de aquisição do conhecimento, em que o papel do professor deve ser proporcionar situações de aprendizagem nas quais o aluno possa aplicar uma série de estruturas lógicas para construir o conhecimento, como se essa fosse uma grande aventura. Paín observa que muitas crianças não aprendem a ler e a escrever no início da escolarização porque a leitura e a escrita não fazem parte do seu cotidiano; elas não têm motivo para aprender - e a não aprendizagem é o jeito que encontram para se defender de uma situação que Ihes parece estranha e às vezes invasiva.